Dhay S.
terça-feira, 26 de outubro de 2010
Postado por Dhay S. às 13:39
A princípio não aparentara defeitos. Garota perfeita, prestativa, compreensiva, conselheira, amigável, um primor. Mas ninguém lhe conhecia os instintos. Ninguém sabia o que se passava na mente, os desejos que ansiava. Aos poucos foi crescendo-lhe uma revolta, uma indignação com o mundo, com a vida, com as pessoas. Ficou farta da mediocridade na qual se tornara a raça humana. Não se satisfazia com mais nada, nem ao menos com as noites de diversão que costumavam inundar-lhe os sentidos, mergulhá-la em delírios. E com a revolta veio a indignação. Queria fazer algo, mudar alguém, transformar alguma parte. Mas via-se de mãos atadas. Sempre fora tão boa que qualquer mudança de comportamento expirava estresse, ignorância, maldade, falta de solidariedade. Não podia fazer nada, estava presa ao estereótipo que se formara sobre si e à realidade cruel e infame do mundo. Pensavam que não, mas ainda tinha o controle sobre alguma coisa. Sobre sua vida, sobre suas coisas. Se não estava satisfeita com o que via lá fora, com aquele mundo, criaria seu próprio mundo. Foi o que fez. Definiu propósitos, princípios, ideais. Montou e organizou as próprias leis. Seu corpo continuava ali, representando impecavelmente o papel no teatro da vida. Mas a mente, seu ponto principal, não estava. Tinha se mudado para um lugar à parte, um lugar longe de toda essa hipocrisia que vos rodeia, longe da mentira, dessa rede de intrigas que vos prende e enforca, obrigando-vos a participar das baixezas nobres, da sujeira louvável. Não penses que idealizava o paraíso, não queria aquele lugar monótono. Na verdade, não se imaginava vivendo em um mundo perfeito enquanto o corpo ainda estava aqui, não. A mente não criara ilusões. Apenas enclausurara-se dentro de si. Escondeu-se, fechou-se sobre si mesma, construiu uma barreira impenetrável, um muro intransponível. Poderia conviver com seus objetos pessoais, únicas coisas que ainda lhe davam alguma alegria, mas passou a viver na escuridão. Uma criatura isolada de tudo, num cubículo com total ausência de luz, trancafiada e à parte de toda a podridão do mundo, de toda a hipocrisia, mentira, enganação. A possível negritude do seu mundo refletia seu descaso. Descaso com a família, com a escola, com as amizades, falsas e inúteis como descobriu, com os sentimentos. Tornou-se fria, calculista, indiferente. Mudança tão súbita não fora provocada por problemas pessoais. Não era a imagem de si, era o reflexo do todo.
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