quarta-feira, 27 de julho de 2011


Sua voz ainda retumba nos meus ouvidos. Aquela voz suplicante e turva. Afinal, deveria ele suplicar? O seu pedido não beneficiaria em igual proporção a mim? E por que então eu resistira? Pela minha inseguraança, pelo medo de um monstro inexistente. Aquela voz. Em sintonia com o aroma, doce e envolvente. Turbilhão de sensações que me transportavam para outro mundo sem um mínimo de esforço, embora eu resistisse. Batia o pé e teimava em permanecer lúcida. Seria melhor embriagar-me na sua voz e deixar-me seduzir por seu cheiro. Decerto sempre fui teimosa. Apegava-me a cada centímetro de sanidade e relutava em enlevoar-me. E tudo isso por pura teimosia, manha. Talvez algo mais. Racionalidade exacerbada. Sou tão racional e centrada que imponho barreiras a mim mesma. E tudo isso me impede de experimentar tais enlevos. Cerco-me de cuidados, estou privada dessa transcendência que só ele me cedia. Só o seu perfume e a sua voz me transgrediam a uma existência superiormente interessante. Um luxo radioso de sensações. Ele era o meu Basílio, enquanto eu incorporava a Luísa recém-cativada. E desde as três começava a ser feliz.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Não entendo a relação entre loucura optativa e felicidade. Por loucura optativa entenda passar vergonha, rir de tudo, beber até cair, ultrapassar limites, aquela típica pessoa que finge não se importar com o que a sociedade pensa mas usa as últimas tendências de moda para não ficar por fora. E quando a chamamos de loucas, dão a simples resposta de que ao menos são felizes. Por quê? Por que se criou essa relação? Não compreendo. Quer dizer que se eu não gosto de dançar em público eu não sou feliz? Só porque não ando rindo de todo idiota que vejo eu não sou feliz? Mas afinal, o que é felicidade? Há alguma fórmula pronta? É padronizada? O que faz um brasileiro feliz é o mesmo que faz um russo feliz? Decerto que não. Então, por que acha que eu não sou feliz? Qual explicação me dá por pensar que felicidade é ser expansiva e comunicativa? Essa é a sua felicidade. A minha é muito diferente. O que me faz feliz não tem nada a ver com essa loucura toda. O que me faz feliz é outra coisa. É um bom livro, uma boa música, um bom filme, um bom vinho com uma boa comida. Essas atividades que você taxou de chatas. Tudo isso me leva ao êxtase. Esses pequenos prazeres da vida. Sem extravagâncias nem exageros. Na medida certa. Assim que eu fico feliz. Então, por favor, pare de ser tão egoísta. Pare de se refugiar na sua loucura optativa a fim de tentar ser feliz, porque só os loucos são felizes. Pare de hipocrisia. Tente encontrar a sua felicidade. Procure o que te faz feliz. Não vá pelos outros, eles não são como você.
Emilia saiu de casa às sete da manhã. Sentia-se exausta, a noite de ontem fora cansativa. Um sorriso de canto projetava-se em sua face. Caminhava devagar, sem perceber os olhares que deixava para trás. Figurava o restante do dia, como se para atrair boas ações. Chega de tantos desastres, foram suficientes por uma noite. Uma menina com saia xadrez e um cachorrinho sob o braço comprava flores artificiais. Teria alergia a pólen? Acompanhou Emília com o olhar virando o pescoço para vê-la até dobrar a esquina. Fútil! No café com mesinhas de ferro, um homem sentado bebericando algum chá de cheiro forte com uma dose de estimulantes ainda desconhecidos pelos drogados. A moça de cabelos curtos e botas compridas mexeu com sua imaginação depravada. Pensou se ela gemeria como sua filha, se seria adepta do anal como sua vizinha. Pervertido! Metros depois, a loja de roupas prendia a atenção de uma adolescente deprimida. Cortava os pulsos graças à sua mãe que lhe tirara o IPod. Chegou a admirar Emília, com seus piercings e tatuagens, era uma verdadeira revoltada. Quais seriam seus motivos? Será que foi proibida de sair à noite? Ou não a deixaram usar seu tablet? Ficou curiosa. Superficial! Emilia entrou numa livraria incomum, meio escondida nas sombras, com as portas fechadas e poucos livros na vitrine. Percorreu com os olhos as poucas prateleiras do lugar e selecionou alguns títulos. Manual do Iniciante 502; Defesa Avançada – nível 3; Não Perca o Controle – 25 técnicas infalíveis de proteção; Invocando com Segurança; Guia Prático de defesa – se algo deu errado, este livro é seu melhor amigo. 

Sentou-se à única mesa do lugar. Era curta, com apenas dois lugares ambos vazios, feita de madeira de lei. Aparentava ser bastante antiga, do tempo dos reis. Uma fina camada de poeira denunciava a falta de uso. Pouquíssimas pessoas devem freqüentar esse lugar. Agora sua mente trabalhava mais rápido, passado o torpor do acordar. Normalmente, levantava-se bastante ativa, mas aquele não era um dia normal. As atividades da noite foram além do combinado. Aqueles imbecis, gostaria de vê-los lidar com você. Vasculhou os livros com certa agilidade, como se conhecesse as páginas desejadas. Depois de conferir que tinha o necessário, dirigiu-se ao caixa. A máquina registradora era obsoleta, sequer aceitavam cartões de crédito. Emília precisou ir ao banco mais próximo e sacar duas notas de cem. Durante o trajeto, novas pessoas a olharam com estranheza, e um cachorro latia com insistência, quando ela passou em frente ao portão da casa. A estudante com sete livros sob o braço. Desesperada! A mãe peituda com três filhos mal vestidos atrás de si. Vagabunda! O homem de terno, mala de couro preto e olhar desconfiado. Corrupto! O namorado que enviava torpedos pelo celular enquanto a namorada estava distraída. Traidor! A atendente da livraria tinha uma aura esquisita. Os cabelos negros escorridos caiam pelos lados do rosto e seguiam até abaixo da cintura. Mascava um chicle, enquanto folheava uma revista de bandas góticas sem muito interesse. Tamborilava o balcão com unhas roídas. A maquiagem borrada dava-lhe o aspecto de uma pintura surrealista. Solitária. Emilia pagou os livros e saiu depressa da livraria, embora aquele ambiente lhe fosse agradável. Precisava resolver essa questão o mais rápido possível, então rumou direto para casa, sem pensar nos espécimes com os quais cruzava pelo caminho. Durante o trajeto, relembrou-se passo a passo dos acontecimentos de ontem, para ter certeza de não esquecer nem uma palavra, nem uma ação. Tudo seria importante para desfazer o ritual. Passou numa loja de decorações e comprou algumas dúzias de velas vermelhas e incenso, não pôde apagar as outras e derreteram por completo.

Sentou-se na mesa da cozinha com um café forte na sua xícara azul. Levou algumas horas para ler todos os livros, precisava de toda ajuda possível, ainda mais por estar sozinha desta vez. Adiantou-se para começar o novo ritual, não queria que escurecesse enquanto lidava com essas criaturas. Deveria pedir ajuda, expulsar espíritos de seu próprio corpo não seria fácil, mas tudo foi culpa daqueles idiotas, não poderia correr o risco de algo dar errado de novo. Incompetentes! Acendeu as velas e distribuiu-as pelo apartamento, duas em cada porta e janela, fazendo um portal iluminado nos cantos. Afastou os móveis da sala de estar e com o sal que restou refez o hexagrama, que foi desfeito pelas pegadas dos garotos quando saíram correndo, abandonando-a à sua própria sorte. Em cada ponta pôs mais uma vela e, no centro, um coelho com as patas amarradas. Acendeu o incenso e seguiu para o centro do hexagrama. Com uma vela aos pés e uma adaga numa das mãos, concentrou-se para pôr em prática o que aprendeu nos livros. Cum autem ibi me venire. Reliqui locum tuum eoque interritus. Resume sedes tua ego me invocant te dominari! Enquanto recitava, cortava o peito do animal. Só uma brisa suave penetrou no apartamento, apesar das janelas fechadas, fazendo as chamas tremeluzirem. Tentou novamente, com mais convicção. Dicam mihi, nunc invocare, qui cuncta videt. Age nunc, et in opera tua! Agora o ar estava frio, algumas sombras se moviam, e a única iluminação ali dentro era a luz fraca e mórbida das velas, mesmo com o sol das quatro da tarde derretendo os sorvetes das crianças. Sons esquisitos, gritos, gemidos e risos cadavéricos, barulho de umidade, ossos estalando. Ruídos metálicos, de dor e medo, quebravam o silêncio. O odor de mofo e morte enchia o ambiente. Coração disparado, mãos tensas, e um grito torturante emanou do fundo da alma. A adaga caiu das mãos, junto com o animal morto, caíram das mãos quando suas pernas dobraram-se para trás e seu pescoço deu um giro de 270°. Os piercings da garota foram arrancados de sua sobrancelha, boca, língua, seio e umbigo, e atirados contra a porta. Seu corpo gravitava dentro do hexagrama, girando no seu próprio eixo, até ser arremessada contra o espelho da sala e ter a pele perfurada por minúsculos cacos de vidro. Os gemidos substituíram-se por risadas histéricas, estava se divertindo com a dor da menina. Mesmo ferida e sangrando, Emília conseguiu levantar-se e proferir mais algumas palavras. Tentativa inútil. 

Os três espíritos recém chegados não permitiram. Invadiram-lhe o corpo, assumindo o controle físico e mental. Ela achou que era brincadeira! Seus amigos medrosos a manipularam? A garota punk, ela é forte o suficiente para suportar outros seres! Ela se considera muito capaz! Muito segura de si para ceder aos Irmãos! Em cada período, uma voz diferente emanava de sua garganta. A cada instante, um Irmão diferente tomava o poder. O corpo da garota bailava pelo apartamento, numa dança desritmada e sem sincronia, uns movimentos macabros, sem um mínimo de beleza. Sua mão esquerda apanhou a adaga decaída e realizou mais alguns cortes profundos em sua face, tornando-a irreconhecível. A brincadeira estava divertida, era excitante vê-la sofrer. Entretanto a noite só estava começando, ainda havia muita gente que os esperava. A dança fantasmagórica cessou e a garota arremessou-se pela janela. Estavam no décimo terceiro andar, nenhuma probabilidade de sobrevivência. Seu corpo aterrissou no bosque ao lado do edifício. O cheiro de sangue fresco atraiu os lobos que vagavam por ali. Emília foi devorada em minutos, enquanto os quatro Irmãos seguiam procurando algum outro grupo desavisado que gostasse de novas experiências.
Estava acostumada a viver sozinha. As pedras do caminho deixaram-na rígida. Auto-suficiente, como ela sempre ansiou. Aquele vazio já não a incomodava, sentia-se tranqüila na sua própria rotina. Livros, música, vinho. Esses pequenos prazeres a satisfaziam, não precisava de mais nada, não precisava de mais ninguém. As férias, entretanto, a surpreenderam. Foi um sopro do destino com uma pitada de sorte. Algumas colheres de bom humor e uma dose de festas. Um sorriso encantador. Dentes brancos como aquela nuvem passageira. Olhos carinhosos que a seduziram. Ombros largos onde podia cravar suas unhas afiadas. Ele encaixava-se com perfeição nos seus planos. Além disso, era diferente. Era natural, sem esforços. Tudo o que ela procurava, só alguns ínfimos detalhes não lhe convinham. Ele a fazia bem, entende? Não era o estereótipo de homem perfeito, não era intelectual nem bem sucedido. Era bonito, decerto, e carinhoso. Mas nada que fizesse derreter qualquer coração de gelo. Todavia, era o que ela queria, o que ela precisava. Bebia, não lia, cometia alguns erros de português. Imagine! Logo ela, que admirava sobretudo uma boa gramática, relevar suas infrações! E relevava. Deixava passar, achava graça, ria por vezes. E achava bonitinho quando ele pronunciava o “s” do plural com tanto esmero. Ele a cativava de um modo singular, que só eles compreendiam, só ela reconhecia. Com surpresa, percebeu uma esperança crescente. Sentia um desejo incomum de permanecer a seu lado, de continuar nesse estado de bem-estar. E desejou que essas férias não de findassem. Desejou que aquela semana se prolongasse por mais tempo. Desejou. Ansiou. Esperou. Rezou. Gritou. Sem sucesso. A semana iria passar de qualquer maneira, não importando seus esforços.  E uma mórbida sensação a invadiu. Um misto de perda e morte, solidão e abandono. Quis chorar, espernear, pôr para fora a criança mimada que um dia fora. Mas ela cresceu, aprendeu que chorar não afasta as perturbações. Então, ela só queria terminar essa semana com o seu aspirante a amor. 

“Que não seja imortal, posto que é chama
 mas que seja infinito enquanto dure.”
(Soneto da Fidelidade - Vinícios de Morais)

Às vezes tenho umas ideias meio loucas e sem nexo. Por exemplo, outro dia me peguei analisando a tristeza das pessoas felizes. Não sei de onde surgiu o pensamento, mas lembro-me que havia uma garota próxima, distribuindo sorrisos, gritinhos, beijos. A cada amigo que encontrava, dava um belo abraço, um sorriso afável e uns beijinhos na face. Comentava sobre seu cabelo, o agradava com seus elogios infindáveis. E naquele momento, percebi a tristeza que ela tentava esconder. Comecei a notar os olhos de certas pessoas e surpreendia-me com o brilho opaco que os transbordava. Um sorriso cansado, uma lágrima contida. Não é do meu feitio fazer conclusões sem fundamento,  mas creio que posso afirmar com alguma certeza, depois de profundas observações. Pessoas felizes, com uma alegria incontida, sustentam uma complexa hipocrisia. Talvez se assemelhe à dissimulação, talvez não. Talvez seja medo, seja falta de coragem. É mais fácil responder que se está bem do que explicar os motivos da tristeza. Não as admiro. Algumas podem ser fortes e não quererem que sintam pena delas, mas a grande maioria é covarde. E a covardia não é louvável. Não engrandeço os fracos. São sofredores, reféns do seu defeito. Pobres. Deveriam ser mais verdadeiros, aceitar sua essência, sua tristeza. Quem sabe seriam mais felizes.