sábado, 30 de abril de 2011


Tudo estava tão complexo. A vida se esvaia a doses largas, e só podia sentar e esperar. Esperar. Mas o quê? Sem anseios nem expectativas, esperar pelo quê? Esperar por quem? Com a cabeça nas nuvens, seus pés andavam sem saber a direção. E num momento distraído, numa interrupção das divagações, um barzinho na beira da estrada chamou-lhe a atenção. Tinha o estilo rústico, banquinhos e mesas de piquenique. No segundo patamar, mais algumas mesinhas de ferro cobertas por toalhas xadrez. As pessoas espalhavam-se entre gritos e risos, cafés e cervejas. Não precisou olhar o relógio para saber que a noite já estava avançada. O brilho da lua banhava toda a cena com sua palidez prateada. Imaginava-se sozinha àquela hora. Sentia-se sozinha. Mas os carros na avenida ainda cortavam o horizonte. Tantas e tantas pessoas ainda circulavam por ali, que ficou desnorteada. Letreiros de neon enfeitavam as fachadas vazias da manhã. Lembrou-se da Legião: “Você passa dia e noite e sempre vê apartamentos acesos”.  Tipos tão diversos entravam em seu campo de visão, fora transportada de um mundo escuro para outro cheio de luzes e sons, sabores e odores à espera para serem descobertos. Notou, então, que jamais andara pela cidade à noite. Nunca notara a metamorfose que se infligia à aura daqueles lugares. Nunca percebera o turbilhão que se seguia após o expediente de trabalho. Exato, depois do trabalho. O que movia aquelas pessoas até ali? Tinham trabalhado durante toda a manhã, não estariam exaustos? Teriam problemas, decerto, então por que não estavam em casa tentando resolvê-los? Por que não estavam lamentando a vida, tão sofrida como só ela consegue ser? E como relâmpago numa noite escura, descobriu a resposta. Sim, tinham problemas. Sim, sofriam com seus amores secretos, com suas contas atrasadas. Por isso estavam ali. Por isso reuniam-se à noite. Para afastar os medos e angústias, para fugir à realidade. A noite funcionava como uma válvula de escape a todo furor e toda irritação do dia. Então por que ela observava aquelas cenas com tanta estranheza? Era a única infeliz por ali, sem dúvidas.  Então por que estava infeliz? Repensou. Não valia a pena. Realmente, estava sofrendo à toa. Motivos fúteis? Masoquismo? Autoflagelação? Nada disso. Eram bem reais, mereciam demasiada atenção. Mas sofrer como ela estava não resolveria os problemas. Então, que se foda o mundo, que se foda a minha dor. Saiu da sua bolha conturbada e sombria e adentrou os holofotes. Atravessar a rua foi o suficiente para se contaminar com a alegria, com a euforia daquele ambiente. Nunca imaginara que essa cidade cinza e mórbida durante o dia, saturada de fumaça e tristeza, pudesse sofrer tal mudança, pudesse impor tal mudança na alma d’uma pessoa, afundada em trevas e solidão como ela estava. Agora tinha uma amiga, conquistara sua liberdade. A noite da cidade tornou-se sua confidente,
 a mágica noite na cidade que nunca dorme.

terça-feira, 26 de abril de 2011


“O homem, como os antigos reis do oriente, não se deve mostrar aos seus semelhantes senão única e serenamente ocupado no ofício de reinar – isto é, de pensar.”

Fradique Mendes, numa carta a Oliveira Martins, de 1883.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

 
Ela sabe muito bem o que quer.
Ela sabe o que precisa fazer
e vai à luta (não escuta ninguém).
Ela sabe muito bem
o que é que se espera de uma mulher,
mas não quer nem saber...ela manda ver
(...)
Vai à luta e não escuta ninguém,
nem
a maioria esmagadora, voz da razão,
bom-senso, uníssono ensurdecedor.
Na lua cheia ateia fogo às próprias vestes
só pra acordar de bom humor.

(Ela Sabe - Engenheiros do Hawaii)
 De uma hora pra outra,
De pernas pro ar.
Sua vida inteira,
Não estava mais lá.
Cadê? Sumiu.
Passou, nem viu.
Era a cegueira já na beira do abismo.


(Alça de Mira -  Engenheiros do Hawaii)
Por que não me deixa ver teus olhos? Não posso lê-los, e isso me deixa confusa. Quero ver tua alma, saber o que se passa em tua mente. Mas teus olhos, eles são segredo. Mistério profundo, preciso desvendá-los. Você é nublado, é sombrio. E eu aqui, clara e límpida perante a ti, não escondo nada. Meus olhos não se escondem, abrem meu peito e revelam tudo. Minha boca mente, porque é necessário mentir, é necessário disfarçar o que meus olhos exibem. Mas tu não me mostras nada. Ficas escondido na tua escuridão, não posso definir se mentes, não posso ver a veracidade de tuas palavras, porque não posso compará-las com teus olhos. Oblíquos e nublados e sombrios. Sê claro,  límpido. Eu sou impecável, com olhos que me despem e te exibem os devaneios de minha mente. Sorte minha que não és bom leitor de olhos, e é preciso sê-lo. Sê leitor de mim. Desvenda-me. Sou tão visível, tão aberta, e ainda não me lês, pobre de mim. Precisamos nos ler, é fundamental. Abra-se para mim, quero ler teus olhos, tão oblíquos. Desembaça teus olhos, quero-os claros. Vamos, quero teus olhos, quero-os reflexos de tua alma, sem segredos, desvendar teus mistérios ocultos, invadir tua mente, invadir-te pelos olhos.

sábado, 9 de abril de 2011


Há um corpo estranho na sala. Tanto tempo eu não venho aqui. Até parece um outro mundo, mais poeirento e cheio de sombras. E tantas vezes relutei em aparecer, porque o meu medo vivia esquecido e tão sombrio dentro de mim. Mas naquela hora, sob a luz prateada e pálida da lua, aquele corpo pálido e outrora quente e pulsante, trazia-me à memória dias quentes de verão. Quando pensava nesse verão sentia uma enorme repulsão e tentava a todo custo esquecer o que havia acontecido. Dentro de cada sala havia um pedaço daquela história que tanto me perseguia e eu tantas vezes fugia sem deixar endereço.

Voltando aqui, depois de tanto tempo, não esperei encontrá-lo. Havia fugido, deveras. Ledo engano. Não conseguiu escapar, não fora tão forte e resistente quanto minha alma agora afundada no vácuo. E quanto mais pensava em torná-lo irreal, mais lembranças apareciam de forma distorcida e perene. Muitas vezes lutei contra mim, dei a alcunha de mimfobia, mas não sabia como classificar-me, eu sou um medo oculto. O medo de meus impulsos fora superado. Tomei a bagagem e vim. Vim para relembrar aqueles dias austeros e fugazes. Agora essa atmosfera densa envolvia aquele corpo. Um corpo tão querido e tão amado e tão desejado. E quanto desejo. Era pura atração. Era todo instinto.

Aquele tempo se fora. E ainda estou aqui estatelada revivendo momentos que tantas vezes fui obrigada a apagar dessa memória oriunda e tão banal. Não sei se chamava por um Deus, só sabia que buscava a fé que nunca havia tido. Eu rezava. Implorava e tentava convencer-me de que não fui a dona de um “crime perfeito”. Não fora eu. Não sou eu. Não quero ser assim. Não vou ser assim.  Entretanto, o passado não volta, não é? O tempo não regride. Não há como eclipsar o que foi feito.

O que devo fazer? Devo contar? Não sou um ser vingativo e odiento. Lembro-me que fora subestimada por todos por dizerem que não seria capaz de fazer o que fiz. Mas fiz. Olhando aquela lareira desenhei meus sentimentos sob o fogo e vi que sou sim vingativa e faço questão que fiquem por saber sobre mim.
 E detalhei em meus pensamentos sórdidos o que havia feito. O tempo passa e a memória se apaga. Não a sua memória. Não as suas palavras. Lembro-me muito bem das frases curtas e cruéis. Fraca, covarde. Eu, querido? Justo eu que por tanto tempo lutei e sobrevivi às tempestades? Tolo. Subjugou-me. Não deveria ter feito isso. Não deveria ter dito isso. Agora que dei vazão aos meus ímpetos, agora se sente culpado? Tarde demais. Quando bati à sua porta estava com um ar límpido na face, espantou-se ao me ver mas não deixou de exibir o sorriso indefectível que por tanto tempo fora meu paraíso. Realmente esperei que não estivesse aqui, não queria fazer isso. Mas era necessário, era fundamental.

Sentamo-nos na sala. O sol se punha, crepúsculo dourado banhado em tons de rosa. Aura romântica que um dia embalou nossos carinhos vis. Não hoje, e depois de tudo. Hoje o espetáculo é meu. Hoje é meu dia de te subjugar. Veio para mim, como uma presa caindo nas teias do seu predador. Inocente cordeiro atraído pelo charme da raposa. Deixou-se cativar. Pertenceu-me. E no momento de êxtase, quando cada centímetro de pele vibrava com os tremores que lhe percorriam o corpo, a lâmina afiada duma faca de dois gumes encontrou seu destino. Aquele líquido quente e doce esvaia-se desse corpo quente e perfumado. Cheiro de lavanda, recém-saído do banho. Agora meu olfato era inundado pelo leve odor da ferrugem, inebriante e envolvente, afogando-me em sensações inesperadas.

Sua voz sumira. Não tinha como gritar, faringe com corte profundo. Tentava desesperadamente impedir o sangue grosso de lhe abandonar, tentativa frenética de reverter o caminho natural. E eu assistia a tudo impassível, nenhuma ruga de preocupação, nenhum sinal de arrependimento. Ele pedira por isso, ele procurara por isso. Ora, eu não sou covarde. Tivera sua comprovação.
O ambiente agora parecia calmo. Partículas suspensas dançavam sob os raios de luar que entravam pela janela. E o corpo estranho permanece ali. Um corpo estranho mas conhecido há tanto tempo. E quanto tempo. E como era bom aquele tempo. Fiquei parada analisando os caminhos desenhados sobre aquele corpo pálido que um dia fora tão viril. Imaginei que em cada espaço havia um cheiro meu e uma risada involuntária perpetuou em mim e não queria ter sido assim, queria ser mais pura e mais calma como achavam. Havia atribuído a mim o cognome de “santinha” e isso era imperdoável.

Fui embora. Levando comigo toda dor que tu externaste quando aquela lâmina prata roçou sobre o teu corpo. E fui como se nada houvesse acontecido. Afinal, era apenas mais um corpo estranho, como sempre, não conhecia nada. Eu não havia visto nada. Era apenas mais um alterego que sentia nojo dos homens que achavam que mulheres eram seres descartáveis.


(Dhay Souza & Ananda Ribeiro)

quinta-feira, 7 de abril de 2011


"Sempre assim. Você vem e vai, vem e vai. Um pêndulo, vem e vai. Vem e vai. Assim. Sempre. Mas assim. Assim não dá. Eu quero, vem e fica. Vem e não vai. Não dá. Eu preciso. Você vem. Mas vai. Não dá, vem e fica. Fica assim, quietinho. Fica assim, meu bem. Vem e fica. Não vai. Vem e não vai. Não dá, não pode, não consigo. Eu quero assim, só vai assim. Você aqui, bem pertinho. Eu e você. Assim. Pertinho. Quietinho. Quentinho. Carinho. Bem pertinho, muito carinho. Vem, meu bem. Vem.  Assim, vem. Não vai, não dá, nada brusco, nada rápido. Devagar, assim. Carinho, meu bem, pertinho. Vem, não vai. Vem, fica. Mas você vem e vai. Não vai, fica. Quietinho, pertinho, carinho. Muito carinho. Vem e fica. Fica assim. Assim. Só. Assim. É. Assim."



sábado, 2 de abril de 2011


Loucura, eu sei. Mas o que posso fazer? Não tenho forças para lutar. Não depois de tudo. Jogo perigoso, muito arriscado. A sensação da adrenalina. Endorfina paralisando a realidade. Veneno letal que me transporta para outro patamar. Algo mais elevado, mais profundo, mais intenso. E era tangível. Tão rígido quanto o próprio diamante. Era tão escuro quanto o abismo de dor e desespero. E lá no fundo, de uma simples revelação, surgiu. Uma pequeníssima luz, mas intensíssima. Arrebatou-me. Não pude fugir, era o anseio de toda uma vida que agora me apresentava como a mais proibida das brincadeiras. Afinal, era só brincadeira. Não, não era. Era de verdade. Muito real. Mas essa realidade era diferente. Era melhor. Era saborosa e excitante. Então eu fui. Entreguei-me a essa realidade que extasiava a outra realidade. E vivendo entre dois mundos, oscilando entre duas vidas, tudo estava equilibrado. Um tênue equilíbrio. Dançando na corda bamba. É arriscado. É perigoso. Mas não posso pôr fim. Não posso acabar com esses delírios, com esses devaneios. Tudo bem, eu me arrisco. Por você, eu me arrisco.
E hoje, mais do que nunca, preciso de uma overdose. Não importa do que, mas algo que mexa com meu cérebro e me desligue do mundo. O sono é um bom caminho, mas lá vem os sonhos para me despertarem e lembrarem-me. E depois do sono, a realidade ainda continua lá, tangente e aguda. Quero alucinógenos, quero excesso, quero tudo que me deixe sem nada. Sem emoções, sem lembranças, sem mágoas. Quero uma boa dose de cocaína, só hoje. Quero voar dentro do apartamento. Quero elefantes e cobras. Quero cogumelos coloridos. Quero visões psicodélicas. Preciso desse momento. Preciso extravasar. Hoje, mais do que nunca. Hoje, depois de tudo, não há mais nada a ser feito, e tanta coisa para fazer. E tanto, e tantas, e tudo. E sempre, e forte, e dor. Cansei de você, cansei delas, cansei de mim. Cansei de fazer o que não quero. Cansei de obedecer, cansei de atender. Quero nada. Quero vazio. Quero a alegria que há tempos fugiu. Quero o vácuo, melhor do que tenho aqui dentro. Quero a overdose que me liberte de mim mesma. E hoje, mais do que nunca, preciso ser liberta.


   As divagações sobre o mundo são tão complexas. Homem máquina, homem bicho. Sociedade, dinâmica econômica, lógica capitalista. Política, ditadura, democracia. Afinal, de que serve tudo isso? E de que serve esses paradigmas paradoxos? De que serve padrões e definições? De que serve etiqueta e comportamento? Decidir sua vida. E isto não está errado? Como podem definir sua vida? Como podem ditar suas regras? Por que não pode beijar seu professor? Por que não pode comer porcarias? Por que não pode dar para quantos quiser? Poder, eu posso. Certeza que pode? Aposto que não. Vai ser julgada, apontada, humilhada, execrada. E isto está errado! Somos todos produtos de estereótipos falsificados e obsoletos. Ninguém por aqui tem vontade própria, todos somos guiados e, inconscientemente, forçados a escolhermos o que nos for conivente. E não adianta contestar, não adianta revolucionar. A história é essa e ponto. Nada de “ninguém me influencia”. Querida, você é pura máscara. Você não passa de alguém que foi modificado desde o nascimento. Deixa de lado esse papo de identidade, ponha o pé no chão e tire a cabeça das nuvens. Acorda, por favor. Será melhor para você, acredite.