domingo, 5 de dezembro de 2010

Um trauma de infância. Mas nele, o efeito foi inverso. Ao ser mordido por um cachorro, podem ter pavor deles. Encontrou uma cobra, enquanto andava pela floresta? Nunca mais desejará vê-la de novo. Tivera contato com essas criaturas muito cedo. Talvez a inocência inibisse o medo, a implantação tardia dos padrões impediu a repugnância daqueles inúmeros olhos, das patas cobertas de pêlos. A hostilidade familiar obrigava-o a isolar-se nos fundos. Troncos caídos, montes de folhas secas. Ambiente suscetível ao aparecimento de seres marginalizados. Na primitiva sociedade onde ele convivia, considerar-se-ia à margem, também. Então, ali estava em casa. Desenvolveu o gosto por aranhas assim que se viu emaranhado numa teia e prestes a ser atacado por inúmeras. Sem gritos nem histeria, somente movido por pura intuição e curiosidade, desfez-se da armadilha e, com cautela, aproximou-se daquelas que há pouco seriam seu carrasco. Organizadas, diferentes, cheias de patas! Serviriam como um bom objeto de estudo. Livros eram seu universo. Leu e absorveu tudo o quanto pôde encontrar. Incríveis, magníficos animais! Aracnofilia era a sua doença. Começou pela teoria, mas preferiu a prática. Montava esconderijos para suas amigas, alimentava suas crias. Essa era, particularmente, a parte mais excitante. Via-as liquefazendo as vítimas, deixando o exoesqueleto exclusivamente intacto. Se pudesse, ficaria os séculos observando aquele espetáculo. Mas o tempo passa, não é? E para ele não seria diferente. Cresceu, ampliou horizontes. Conheceu novos animais, aprendeu novas técnicas. Mas as aranhas nunca deixaram seu centro de atenções. Escorpiões, gafanhotos, lagartas, libélulas, nenhum desses oferecia a seu paladar requintado o mesmo prazer que os aracnídeos. No entanto, eram criaturas muito pequenas. Mesmo os maiores espécimes da sua diversificada coleção por vezes entediavam-o. Além disso, tinha um desejo incontrolável. Era mais do que vontade, tornou-se necessidade, obsessão. Quem seria seu voluntário? Difícil encontrar alguém. Como estava no ramo da bioquímica, em contato com hospitais e necrotérios, foi relativamente fácil encontrar um cadáver abandonado, com o pretexto de testar uma nova droga. Começou com cadáveres, sim, mas sentia falta do calor. O contato gélido repugnava-o. Gostava de sentir a temperatura elevada das atividades físicas, de sentir o pulsar do sangue nas veias. Então passou a capturá-los vivos. Crianças com mais freqüência, adultos quando estava faminto. Suas amigas ofereciam-lhe todo o veneno necessário. Tentou criar algo parecido, mas nada era tão eficaz na liquefação dos órgãos quanto o produto original, fabricado pela própria Mãe Natureza. Infelizmente, não tinha presas naturais, recorria às adaptações. Seringas em diferentes partes do corpo aceleravam o processo. Todo aquele teatro enchia-lhe o coração de emoções nunca antes experimentadas. Vê-las debatendo-se enquanto os tecidos viravam sopa de verduras era algo intangível. Quando a sopa estava pronta, abria uma fenda à altura do umbigo e embebia-se naquele sumo de células e líquidos viscerais, com o sutil sabor do veneno que não lhe causava mal algum. Sua estrutura adaptou-se à rotina. Não sentia atração pelos pratos mais requintados, no entanto enchia-lhe os olhos a visão de alguma criatura suculenta. Descia cada vez mais, abdicando da carreira bem sucedida. Vivia pelos becos, à espreita de algum mendigo ou prostituta descuidados. E decaía. E sucumbia. E já não era humano. Não, aquilo um dia fora humano, num passado bem remoto. Não se poderia chamá-lo de Homo sapiens. Asqueroso, insalubre, insano. Vivia pelos instintos, atacava conforme necessitasse. Um ser criado pelo vício. Não o tabagismo, ou alcoolismo. Era a Aracnofilia. A aracnofilia mais explícita e completa que se pode imaginar. Observava, estudava, absorvia tudo sobre aracnídeos, mas a sua paixão era tão intensa e descontrolada, que não se conteve. Queria aranhas, tornou-se uma.

(Dhay S.

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